4 de set. de 2021

Marcos Temporais, Indigenato, Terras devolutas e Terras Indígenas

 

Marcos Temporais, Indigenato, Terras devolutas e Terras Indígenas

escrito em 04/09/2021, por Rodrigo Marchini

- Introdução

As atuais discussões sobre o marco temporal e as terras indígenas me remetem a minha pesquisa de monografia e dissertação na área da História do Direito no tema das terras indígenas. Muito tem se falado sobre o tema, mas creio que sob a perspectiva da História do Direito alguns pontos têm sido esquecidos ou até ignorados. O que me motivou a reunir e resumir aqui o que pesquisei sobre o tema.

O enfrentamento do tema é dos mais espinhosos, este texto não tem o objetivo de dar uma solução apenas apontar fatos para análise e discussão do tema.

Tentei resumir ao máximo, remeto os mais interessados à leitura dos artigos indicados nas citações e referências.

1- Existe um marco temporal?

Sim existe um tipo de marco temporal. A proteção das terras indígenas com a Constituição de 1988 é um inegável marco de proteção dos direitos originários sobre as terras que os indígenas tradicionalmente ocupam. Mas, o principal fato que quero destacar é que não existe apenas um marco temporal. A Constituição de 1988 não inaugurou um novo Estado sob tabula rasa. Existem milhares de leis anteriores à Constituição de 1988 que continuam com eficácia plena. O Estado Brasileiro apesar de já ter passado por monarquias e parlamentos, sob a égide de diversas Constituições, é o mesmo Estado desde sua independência, e mesmo após a independência manteve por um longo período uma série de leis do período colonial.

E o que havia antes da Constituição de 1988? Para responder essa questão o jurista deve utilizar como guia a expressão latina: Tempus regit actum, a norma a aplicar é aquela que está em vigor à data da prática do ato. Então façamos o exercício de regredir no tempo e observar os diversos marcos temporais que regraram as terras indígenas no Brasil.

  • Marco temporal da Constituição de 1967: terras indígenas como bens da união, devendo se assegurar a posse permanente das terras que habitam com direito ao usufruto exclusivo.

  • Marco temporal da Constituição de 1946: deve-se respeitar a posse das terras dos indígenas em que se achem localizados em caráter permanente.

  • Marco temporal da Constituição de 1937: deve-se respeitar a posse das terras dos indígenas em que se achem localizados em caráter permanente.

  • Marco temporal da Constituição de 1934: deve-se respeitar a posse das terras dos indígenas em que se achem localizados em caráter permanente.

Em síntese, desde 1934 a ocupação de terras por indígenas tem sido continuamente protegida. Se houve esbulho, após esse marco temporal, interrompendo a posse, houve violação do direito, desrespeitando a posse indígena.

Para ser breve, parei a retrospectiva em 1934, mas mesmo antes pode se apontar outros diplomas legislativos com marcos temporais que protegiam as terras indígenas.

2- O que é Indigenato?

Não só de leis escritas vive o direito. Existem costumes, princípios, direito natural, quer seja aquele de origem divina para alguns, quer seja o de origem racional para outros. Os principais e mais fundamentais desses direitos estão na DeclaraçãoUniversal de Direitos Humanos de 1948. Entre eles, e por vezes surpreendentemente esquecido que também é assim classificado, o direito à propriedade é um direito humano.

Na defesa das terras indígenas o principal instituto utilizado é o indigenato. Este instituto foi introduzido e popularizado no Brasil pelo jurista João Mendes Junior.

Mais facilmente entende-se indigenato em oposição ao colonato. O colonato é a ocupação de uma nova região por uma população não nativa. Já o indigenato não é a ocupação de uma nova região, mas a continuação de um domínio por uma população, que começou com os seus longínquos ancestrais. No colonato há apenas uma ocupação que precisa ser legalizada pelo Estado. No indigenato há um direito congênito, não há terra a ser adquirida: quando a pessoa nasce já nasce com a terra.

Desta forma o indigenato nada mais é que o reconhecimento do direito à propriedade na sua forma mais pura e inicial e não menos válida que qualquer outro tipo de propriedade, um direito humano.

3- Terras Devolutas e Terras indígenas (para mais informações sobre o assunto veja aqui e aqui)

Um dos problemas que paira sobre a proteção das terras indígenas é a existência e a difícil definição das terras devolutas.

Terras devolutas de forma simplória, para não me alongar, são terras vagas ou abandonadas que com a expansão das fronteiras territoriais brasileiras foram aumentando e se agregando aos bens públicos.

O Estado é livre para gerir, administrar e vender as terras devolutas. Entretanto, por falta de demarcações as terras indígenas ficaram e ficam indiscriminadas das devolutas tornando dificultosa a proteção das terras indígenas, como no caso de venda ou concessão de terras devolutas que na verdade são terras indígenas.

Para finalizar este texto, e ilustrar o ponto acima, narro um episódio envolvendo o abolicionista Joaquim Nabuco e a confusão entre terras indígenas e terras devolutas no Xingu, fato que ocorreu em 1879. Apesar de sua distância temporal e algumas mudanças no vocabulário situações semelhantes ocorreram e ocorrem até hoje.

 

Episódio de concessão de terras do ano de 1879

Em 1879 na Câmara dos Deputados, Joaquim Nabuco, então deputado pela primeira vez, relata o ocorrido no seu livro “Abolicionismo” (NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo: Publifolha, 2000, p.65) e em um discurso da campanha eleitoral de 1884 (NABUCO, Joaquim, Campanha abolicionista no Recife – eleições 1884, Brasília: Senado Federal, 2005, p. 76).

E de fato nas atas da Câmara dos Deputados está transcrita discussão sobre a concessão de terras do vale do Xingu. O projeto começa a ser examinado no dia primeiro de agosto de 1879, numerado projeto 193, nele se deveria aprovar o Decreto n. 6.954 de 28 de junho de 1878 que “concede a Elias José Nunes da Silva e outros privilegio de 20 annos para explorarem e extrahirem productos naturaes no valle do rio Xingú”.

O Decreto referido condicionava a concessão a algumas cláusulas, entre outras, a cláusula II, faz referência aos índios locais, sendo que os concessionários devem custear as despesas do Governo Imperial voltadas a sua civilização e catequese; e somente podem empregar os índios mediante contrato aprovado pelo responsável da catequese. Ou seja, o decreto reconhece que há índios na região, e concede a terra que originalmente ocupam para a iniciativa privada, o que somente seria possível de se fazer se a terra em questão fosse considerada devoluta, ou res nullius como Joaquim Nabuco as chama no livro “Abolicionismo” (NABUCO, Joaquim. O abolicionismo, p.66).

Na Câmara o deputado Nabuco questiona como é possível que o Governo faça uma doação dessas sem considerar o direito de propriedade, comenta que o decreto não faz referências a área da concessão, mas fala apenas em “valle” sem especificar a medida de sua extensão e questiona se os índios da região não serão utilizados como escravos (Annaes do Parlamento Brazileiro, Camara dos Senhores Deputados (1879), tomo III, Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1879, sessão de 1 de agosto de 1879, p.459). Depois afirma que a região é desconhecida e deveria ser aberta pela ciência e defende que o direito que os índios “têm à pesca e à caça, ao seu arco e à sua flecha, à liberdade de que gozam nas florestas, no meio das quaes vivem, é tão perfeito como o direito que nós temos à nossa propriedade (…) É um direito natural”. O deputado Prisco Paraiso diz que há um direito superior que é o direito de levar a civilização ao índio, e Nabuco responde que o direito de civilizar é uma “especulação tão infame como o do tráfico dos negros” (ibidem, p.460).

Ainda no mesmo discurso, Nabuco questiona se o governo pode conceder os meios de vida dos “selvagens” para particulares como se fazia nos tempos coloniais, o deputado José Caetano argumenta que o que se concede é apenas o usufruto e Nabuco responde que esse usufruto exclui todas as pessoas que já ocupam a região, a que José Caetano responde que o governo tem o direito de aldear os índios, que o território não é dos índios, Nabuco aceita que o governo tem o direito de aldear os índios “mas quando o aldêamento é apenas servidão, o governo não tem esse direito”.(ibidem, p.462)

Em 13 de agosto de 1879 toma a palavra o Ministro dos Negócios Estrangeiros, o sr. Moreira de Barros, para defender o decreto de concessão. Lendo o requerimento e memorial dos concessionários diz que a região é desconhecida, mas a exploração da região tem importância política, industrial e comercial. Diz que o rio Xingu é uma via de acesso estratégica para o Mato Grosso por ser de fácil navegação e se encontrar inteiramente em território brasileiro. Que a região é rica de recursos naturais: borracha, castanha, etc. E que é possivelmente rica em recursos minerais. Reconhece que há índios não região, mas não considera sua presença como obstáculo, diz que são índios “selvagens” ou “semiselvagens” e que não é habitado por nenhuma pessoa “civilizada”. Relata que as missões da Igreja Católica não têm tido sucesso em integrar o índio, contudo isso pode ser conseguido pela iniciativa privada, sem gerar custos ao Governo e admite que assim a região será “tirada do domínio dos selvagens e restituida ao Imperio.” E com a construção de uma estrada na região ela poderá ser povoada, atrair imigrantes, e espera que essa nova população irá “com seus exemplos de trabalho regenere ou substitua gradualmente a população indigenas que alli domina.”. Depois, o Ministro argumenta que se respeitou a Lei de Terras e o decreto que a regulamenta, pois a concessão se refere apenas ao usufruto e não ao domínio das terras que diz serem devolutas, já que pela Lei o domínio delas apenas pode ser transferido pela venda. Diz que o vale do Xingu pertenceu a Portugal e agora pertence ao Brasil, diz que os índios são possuidores da região. O Ministro finaliza seu discurso dizendo: “O Xingú será a maior riqueza do Brasil depois que deixar de ser propriedade do Estado.” (Annaes do Parlamento Brazileiro, Camara dos Senhores Deputados (1879), tomo IV, Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1879, sessão de 13 de agosto de 1879, pp. 68-72.)

O deputado Américo, no dia seguinte, continua a discussão e diz que Nabuco está exagerando na sua defesa apenas para firmar sua posição de oposição ao governo e que ele está “advogando falsos principios da propriedade dos indios.” Diz que a região do Xingu está “deserta e perdida para a civilização”. Mas, argumenta que o problema da concessão é a criação de um monopólio na região que abre um precedente para futuros pedidos de particulares, que o monopólio desincentiva o povoamento da região, pois ninguém poderá entrar nas florestas sem permissão dos concessionários, infringindo a liberdade de comércio. Diz que há exploradores e possuidores não-índios na região que têm um direito de permanecer no local, mas serão expulsos pela concessão. Afirma que não é contra a ocupação do Xingu, mas é contra o monopólio. Argumenta que na região amazônica há muitas terras devolutas e que os possuidores preferirão explorar essas do que conseguir licença dos concessionários para explorarem as terras do Xingu. Quando termina seu discurso é cumprimentado por muitos deputados. (ibidem , sessão de 14 de agosto de 1879, pp. 95-98).

No dia 29 de agosto de 1879, o projeto volta para a pauta, o deputado Malheiros é quem toma a palavra, diz que não se opõe a abertura do Xingu, mas que é contra a forma que o governo planeja realizá-la, por meio de uma concessão que traz muitas poucas obrigações aos concessionários, não prevendo multas em caso de descumprimento e, assim, apresenta modificações ao contrato de concessão. Malheiros diz que as terras em questão são terras devolutas e depois diz que são habitadas por “selvagens e selvagens ferozes”, e assim apenas o Estado tem direito a essas terras, que é uma região rica em minérios que devem ser explorados. Diz que é uma lei da evolução os povos mais adiantados dominarem os outros, e assim os índios serão trazidos à civilização. Finaliza seu discurso dizendo: “Deixem, pois, que por essas regiões tenebrosas e ignotas paire tambem o espirito de Deos, isto é, o espirito da civilização; porque então veremos alli surgirem aldêas, villas, cidades e provincias, que serão outras tantas estrellas rutilantes, outros tantos brilhantes tão resplandentes como os que já temos no auri-verde pavilhão da nossa patria, que o nobre deputado, que eu, que todos nós tanto amamos e estremecemos.” ( ibidem, sessão de 29 de agosto de 1879, pp. 269-278).

A concessão é aprovada em primeira discussão no dia 4 de setembro, contudo a concessão não volta a entrar na pauta da Câmara. (Annaes do Parlamento Brazileiro, Camara dos Senhores Deputados (1879), tomo V, Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1879, sessão de 04 de setembro de 1879, p. 34.)

Em 1885, o governo provincial concede a mesma concessão que estava paralisada na Câmara aos mesmos concessionários, entretanto por ser economicamente inviável, na época, a empreitada não foi bem sucedida. (WEINSTEIN, Barbara, The Amazon rubber boom 1850-1920, Stanford: Stanford University Press Library, 1983, p. 184.)